Merecer a renúncia do Papa
CANDIDO MENDES
Jornal Folha
de São Paulo de 26.02.2013
A decisão de Bento 16 ajuda a igreja a
superar as rotinas da continuidade e a implementar uma nova face, de serviço,
próxima aos fiéis
A intensidade desses dias pós-renúncia
do papa resulta do choque do gesto quase inédito de Bento 16, frente ao que o
pontífice viu, de início, como a sua meticulosa desaparição na vida da igreja.
O que assistimos foi o impacto dessa
verdadeira dessacralização do eclesial no inconsciente coletivo. A lucidez do
homem passa a prevalecer sobre todo o providencialismo fatalizador a comandar a
ação do papa. E, de logo, no futuro imediato, há que se reconhecer a superação
da alternativa sucessória entre conservadores e progressistas.
A tarefa da igreja à frente não é a das
suas posições sobre o casamento gay, a eutanásia ou o intervencionismo na
questão das células-tronco. Onde chegaríamos, por aí, ao que espera o povo de
Deus da mensagem no seio do seu tempo a que nos conclamou o Vaticano 2º?
Chegaríamos à enorme lição do Concílio, que os pontificados subsequentes não
responderam.
E é exatamente nesse cinquentenário do
Vaticano 2º que urge essa presença, no seio da contemporaneidade, e a sua
interferência no sentido da história. Há que se atentar à absoluta minoria
cristã, dentro do peso asiático da população do novo milênio.
Deparamos a maciça concentração católica
no mundo ocidental, onde o credo perde as maiorias em muitos países europeus, a
partir da Holanda, da Bélgica e da França, "filha mais velha" da
igreja.
Não adianta, por outro lado, procurar a
mazela imediata, justificativa do gesto do papa, vinculada à totalidade da
reflexão existencial, sustentada por um surpreendente reconhecimento da própria
incapacidade. Estamos diante de um evento saído de toda a lógica das sequências
e chegando, por um salto, ao verdadeiro acontecer.
Avulta hoje o entendimento da laicidade
como o efetivo "sinais dos tempos" no caminho da modernidade e após o
endurecimento de Pio 9º e Pio 10. Verificamos o desponte das "guerras de
religiões" como afirmação das culturas desse começo de século, após se
superar o entendimento do Ocidente como a única civilização.
A urgência da tomada de posição não
aceitará um segundo e cansativo papado de transição. Um novo contraponto entre
imanência e transcendência nos caminhos da fé já foi assinalado, na
interrogação desses dias, nas dificuldades de uma atitude fundadora, buscada,
por exemplo, pela Teologia da Libertação, como autêntico profetismo da igreja.
E é nesse registro que o choque da
renúncia, como assumida por Bento 16, instaura uma problemática prévia ao
dilema gasto entre mudança e status quo.
Os reclames da igreja no nosso tempo
exigem resposta às lições dramáticas do terrorismo, à coexistência das
diferenças, à humildade da conversão e à afirmação não-retórica do
comunitarismo. A renúncia serve para superar as rotinas da continuidade da
igreja-instituição e implementar uma nova face, de igreja-serviço, próxima aos
fiéis.
CANDIDO MENDES, 84,
é membro do Conselho das Nações Unidas para a
Aliança das Civilizações, membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão
Brasileira de Justiça e Paz
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