Entrevista concedida ao Jornal Gazeta do Sul, na edição de 22 e
23.12.2012 – Santa Cruz do Sul – RS. A entrevista foi feita pelo José Augusto
Borowsky e parte da mesma foi publicada na página 12.
O que
levou o Sr. a ingressar no sacerdócio? Com que idade?
Eu sou uma vocação que há 30 anos ainda era atípica. Hoje é bem normal que jovens mais adultos e muitos adultos entrem no sacerdócio cristão. Ao optar definitivamente pelo ministério presbiteral já tinha 27 anos. Fui ordenado Padre por Dom Sinésio Bohn, o bispo diocesano e Referencial da Fraternidade, no dia 12.12.1986, na bela catedral de Santa Cruz do Sul, com 29 anos de idade.
Era formado na área de história e ciências
sociais e trabalhava também como professor de história entre muitas outras
atividades. A pessoa de Pe. Arturo Paoli, que completou 100 anos dia 30.11.2012
e vive atualmente em Lucca - Itália - grande teólogo e místico dos Irmãos do
Evangelho - Charles de Foucault -, foi quem me apresentou o evangelho na sua
mais pura essência. Eu até então conhecia o Jesus da militância, um Jesus
ideologizado, assim como muitos jovens se entusiasmam por Che Guevara. Arturo
me ajudou a conhecer o Cristo da fé e do reino de Deus. Apaixonei-me por Jesus
e vi que como homem de Igreja eu poderia servi-LO melhor na missão junto aos
pobres e sofredores. Não fiquei padre a partir de um ideal infanto-juvenil onde
o padre aparece como o homem mais perfeito que os demais. Entretanto fiquei
padre por fazer uma adesão pessoal ao evangelho e por ter sido tocado pela graça
de Deus, podendo deixar de lado meus individuais interesses e me dispor a
gastar minha vida para os outros, e com os outros e as outras.
Encontrou alguma
dificuldade junto à família?
Não. Como eu era adulto e economicamente
independente meus pais já estavam acostumados com minha vida um pouco mais fora
da família. Mas ficaram surpresos e meu pai até dialogou comigo que achava que
eu deveria seguir minha vida da forma como já vinha fazendo e que a Igreja
poderia ser para mim um espaço não bem de realização humana. Ajudei-o a
compreender que “realização humana” também se dá em outra dimensão, não tão
somente nas seguranças materiais ou afetivas. Disse a ele que seria “um pássaro
estranho” na família e eu decidia voar em horizontes outros. Um provérbio hindu
me diz muito até hoje: “Deus me deu asas
bem maiores que o ninho”.
Em algum momento
pensou em desistir e o que o Sr. faria melhor se ficasse Padre hoje, com a
realidade de hoje?
Não. Nunca pensei em desistir do
ministério. Apesar de dificuldades e que existem em qualquer outro estado de
vida, fiz uma opção na alegria, no compromisso e numa entrega radical de mim
mesmo a Deus e sinto-me amado e assistido por Deus cada dia, todos os dias.
Tenho sido e sou muito feliz como padre.
Hoje, 25 anos depois de minha ordenação
vejo que vivemos um paradoxo enquanto homens de Igreja. Infelizmente falamos
demais de Deus. Acho que se deveria falar menos de Deus e viver melhor e com
mais entrega à sua divina vontade. Encontra-se em ambientes eclesiais muitos
funcionários do sagrado e não servidores do evangelho. Na Igreja também ainda
se reproduz em muitos aspectos a iníqua realidade de que quem tem dinheiro tem
mais valor que o pobre. Aos olhos de Deus sabe-se que não é assim. Isso hoje é
sempre mais forte e mais acentuado em muitos lugares. Muitos pregam uma coisa e
faz outra bem o oposto. Em parte também sou isso e vivo isso, pois a própria
Igreja hoje tem fracos meios de purificação, de elevação humana e espiritual de
seus próprios membros.
Acho que precisamos, enquanto homens de
Igreja amar mais e melhor ao povo, estar mais próximo do povo, mais voltados
aos que sofrem, desburocratizar as coisas da Igreja e nos tornar mais irmãos
dentro do próprio mundo da Igreja. Por favor, não estou dizendo que tudo é
assim. Há muita vida coerente e santa na Igreja, graças a Deus. Mas hoje a
cultura moderna tem filtro e não tolera certas “máscaras” que até algum tempo
atrás passava como que despercebida.
Caso ficasse Padre hoje estudaria melhor
os novos códigos de linguagens e me colocaria mais por inteiro e com maior
tempo junto aos jovens, especialmente aos tantos jovens feridos por uma
sociedade que os jogam nas mais diversas orfandades. Os jovens sofrem muito
hoje e a Igreja nem sempre está atenta e preparada para este desafio. Me
profundaria mais na mística cristã e não tanto nos estudos cristãos.
O Sr. não sente
falta de filhos, de uma esposa?
Seria hipocrisia dizer que não. Afinal,
como homem, tenho todas as minhas dimensões biológicas, hormonais e pisco-afetivas
como qualquer outro com sua esposa e filhos. Mas eu tomei uma decisão de dar à
minha vida outra dimensão e consciente das renúncias, algumas até muito
difíceis. Graças a Deus que sou daqueles que fazem amizades várias e com gente
muito querida. Meus círculos de amigos é também em parte minha família, e de um
jeito estranho a gente também acaba ganhando “filhos e filhas” na missão dentro
da Igreja.
O
início da sua atividade sacerdotal foi em Santa Cruz? Como foi?
Sim, foi em Santa Cruz do Sul. No ano seguinte à minha ordenação dia 21.08.1988, Dom Sinésio criou a Paróquia Espírito Santo no Bairro Arroio Grande e lá me nomeou como o seu 1º Pároco. A última coisa que eu queria e deveria fazer na época era trabalhar na direção de uma paróquia. Mas aceitei pelas diversas circunstâncias da época e razões pastorais elencadas por Dom Sinésio. Eu não era e nem sou padre para uma atividade típica de paróquia. Nesta área da Igreja falta-me a devida preparação e carisma apropriado e conheço muitos irmãos padres que a fazem com incrível maestria.
A Paróquia Espírito Santo - Santa Cruz
do Sul – RS - foi meu primeiro chão como
padre por muitos anos. Precisava então organizar toda a estrutura básica da
paróquia como aquisição de casa, carro, secretária, funcionários, abrir novas
comunidades nos bairros, formar um corpo de lideranças internas, etc. Ali
também com muitas queridas religiosas de diferentes carismas e bonitas
lideranças laicais se fez um lindo trabalho pastoral no final da década de 80 e
na década de 90, especialmente fundando novas comunidades em bairros onde a
Igreja não tinha nenhuma presença e revitalizando as comunidades já existentes.
Ao lado da paróquia também colaborei em vários conselhos e serviços diocesanos.
A paróquia Espírito Santo foi também uma primeira base da Fraternidade.
Hoje, como está organizada a Fraternidade?
A Fraternidade por ser uma comunidade
nova na Igreja tem tido nesses 26 anos, desde a sua fundação,
redimensionamentos. Ela nasceu e continua sendo uma Comunidade de Vida Consagrada,
que forma padres, religiosas e leigos com vocação missionária. Ela está
organizada como uma comunidade que presta diversos serviços à Igreja e ao povo,
especialmente a parcela mais pobre e sofredora do povo de Deus. Tem desde
outubro de 2007 a sua sede canônica na capital paulista, na diocese de São
Miguel Paulista. Dom Manuel Parrado Carral, o bispo desta diocese é o Bispo
Referencial da Fraternidade, após 21 anos ter sido Dom Sinésio Bohn, que desde
a fundação concedeu o suporte canônico à Fraternidade.
A Fraternidade hoje está presente em
quatro estados no Brasil com frentes de missão e evangelização. Em São Paulo
tem duas paróquias, seu centro de formação e coordenação de projetos de
solidariedade humana voltados aos mais sofredores. Em Minas Gerais ela está
dando novos impulsos à missão e organizando uma nova “base de lançamento”
missionário e também discernindo para assumir pedidos que vem do nordeste do
Brasil. Na Europa, especialmente na Alemanha e Itália tem uma bonita rede de pessoas, jovens, famílias e religiosos que
fizeram uma adesão espiritual e missionária à missão da Fraternidade.
O
Sr. não está mais em Santa Cruz do Sul?
Sim e não. Sim, enquanto o Padre Superior
da Fraternidade tenho contato estreito com a missão em Santa Cruz do Sul. Não,
enquanto residência, que desde 2009 me fixo mais em São Paulo. Mas continuo
muito presente em Santa Cruz do Sul, no Vale de Nazaré, através de assessorias
diversas que faço para a vida interna da Fraternidade, pessoas e grupos que
mantém um vínculo espiritual e missionário com a Fraternidade. Neste ano de
2012 optei em estar mais presente na missão em Minas Gerais, em São João da
Chapada, distrito de Diamantina. No bonito Vale de Nazaré continuo tendo minha humilde
“casa” quando estou aqui em Santa Cruz do Sul. Este ano passarei o natal em
Santa Cruz do Sul e assim vou poder rever muita gente querida.
Quais são os projetos mantidos hoje? Quantas pessoas
atendidas?
Em Santa Cruz do Sul através do Instituto Humanitas Fraternidade-IHF, mantém-se com diversas parcerias, especialmente com o poder público municipal, o Programa Lázaro de Betânia, que funciona na Casa Irmãos Koch no Vale de Nazaré e que assiste com as melhores condições humanas, terapêuticas e espirituais a 13 homens sem vínculo familiar. Alguns desses irmãos sofredores vão para 20 anos que estão aos cuidados samaritanos da Fraternidade. Continua para o público infanto-juvenil o Projeto Crescer Sempre que neste ano celebrou 16 anos de atividades ininterruptas, tendo passado por ele milhares de adolescentes nessas quase duas décadas. A última informação que recebi da equipe do Humanitas no mês de setembro é que são 86 adolescentes assistidos nas diversas atividades pedagógicas, terapêuticas, semiprofissionais, lúdicas e espirituais. Este público é selecionado entre as famílias das periferias que tem baixíssimo ou quase nenhum poder aquisitivo. Ainda há o Centro Comunitário Infantil que é um espaço onde funcionam atividades voltadas aos idosos da zona sul e feito em parceria com o poder público municipal. Fora de Santa Cruz do Sul a Fraternidade tem um vasto leque de atividades solidárias em São Leopoldo, em diversos bairros da Zona Leste de São Paulo e Minas Gerais.
Como
a Fraternidade se mantém? Os investimentos são altos?
A sustentação
vem das diversas parceiras e do apoio de pessoas que somam com a missão
solidária da Fraternidade, além do próprio trabalho dos membros da Fraternidade.
Em anos anteriores houve um grande investimento vindo do exterior,
especialmente da Alemanha, voltados para a base estrutural da missão, com
diversas construções e equipagem em função de melhor qualificação dos projetos
de assistência e de desenvolvimento social junto aos mais pobres. Fazer missão
social é muito caro e por isso tão poucos fazem, pois no sentido econômico é
uma mão só de ida. Nós estamos lutando para termos acesso à filantropia vinda
do governo federal, e como não temos arcamos com muitas taxas, impostos e coisas
mais que poderiam ser isentas, já que fazemos muito do que é função tão somente
do próprio Estado.
Em Santa Cruz
do Sul nosso setor administrativo está retomando uma rede de apoiadores
individuais que ficou semi parada nos últimos anos e dando a ela um suporte
novo e tecnicamente mais avançado, facilitando também para os doadores no
sentido de evitar burocracia e dispêndio de tempo. Aproveito este espaço e
convido as pessoas que ainda não conhecem a missão do Instituto Humanitas que
façam uma visita aos programas sociais solidários.
Quanto a Fraternidade ela celebrou
recentemente 25 anos de fundação - 2011 - e está internamente revitalizando
programas e definindo novas opções, dentre elas não se preocupar tanto com o
número de pessoas, mas com melhor qualidade humana e espiritual dos seus
membros. Ainda está em construção para dentro de 3 anos a Fraternidade abrir
uma comunidade de missão na Alemanha. Precisamos aprender a dar também de nossa
própria pobreza e sabemos que a Europa, por diversos fatores, torna-se sempre
mais terra de missão.
Planos para os próximos 25, 30, 40 anos ...
O futuro a
Deus pertence, diz-nos o povo sabiamente. Após esses 25 anos de Padre no plano
pessoal sinto a necessidade de voltar mais meu trabalho para as chamadas novas
pobrezas, como disseram os bispos da América Latina na V Conferência Episcopal de
Aparecida, em 2007, que são “as grandes
feridas psicológicas que muitos sofrem nas cidades”.
Tenho
aprofundado nos últimos anos a mística cristã a partir de Teresa de Ávila e me
convenço que preciso dedicar mais tempo e espaço a um trabalho nesta área nos
próximos 10 a 20 anos. Creio que a teologia em parte é bem organizada na
Igreja, mas a sua irmã gêmea, a mística cristã, está em parte esquecida e isso
empobrece a própria teologia quanto a uma maior sensibilidade e capacidade para
um sentir “com” e não somente falar “para”.
A partir de
2013 vou enfrentar o desafio de criar tempo, montar equipes que queiram ajudar
a implantar em muitos espaços a Terapia dos 4ÉS, com a qual eu venho
trabalhando ultimamente em São Paulo e Minas Gerais com jovens vítimas de multi-dependências
e com pessoas que trazem na sua alma e psique grande sofrimento humano. Esta
Terapia é baseada no farto material de análise do ser humano atual vinda dos
médicos-terapeutas alemães Dr. Rüdiger Dahlke e Dr. Thorwald Dethlefsen.
Pessoalmente ando muito interessado nas ricas análises
e conclusões de Edgar Morin para este nosso tão complexo tempo e que desafia a
atual sociedade a ser mais fraterna e mais solidária com quem é próximo da
gente.
Ele propõe que se crie de forma a mais
horizontal possível em cada cidade ou bairro a “Casa de Fraternidade”, gestando
a partir dai novas relações onde o humano e seu habitat seja o referencial
primeiro e não a mercadoria ou qualquer outra coisa. Na verdade estou muito disposto
a partir de tudo o que se fez e se viveu nesses 25 anos de vida e muita missão
para um trabalho e aprofundamento de temas místicos e terapêuticos no campo transdisciplinar, me preparando melhor para dar
também o melhor que eu possa nesta fase da vida onde aos poucos vamos nos
aproximando da velhice e de um amanhã onde as forças não são mais as mesmas.
Mas sem perder a paixão, a alegria de viver, de servir, de encartar-se com o
humano e a esperança, e também sem perder a ternura, jamais.
No jornal Gazeta do Sul pode-se acessar o links para a matéria publicada:
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